24/06/2022

Canga é um tipo de rocha que caracteriza os ecossistemas que revestem depósitos de ferro como em Carajás e no Quadrilátero Ferrífero. Tais ecossistemas são o marco da era Arqueano, de 2,5 milhões a 3,8 milhões anos atrás e, de maneira muito singular, permanecem até hoje.

Canga endêmica em Carajás. Foto: Markus Gastauer

Um minucioso projeto, gestado há cerca de uma década, começa a ser implementado por cientistas do Instituto Tecnológico Vale Desenvolvimento Sustentável (ITV DS). Trata-se do programa Restauração de Cangas da Serra dos Carajás por Indução Bioquímica Microbiana. Quando finalizado, o trabalho dos pesquisadores(as) vai permitir que a Canga de Carajás, um tipo de rocha que reveste os depósitos de ferro e minério seja reconstituída.

Mas a intenção vai além da reconstituição da rocha. Para Markus Gastauer, pesquisador do ITV DS que está coordenando o programa, o foco está em reconstruir a Canga para gerar os habitats para as espécies do ecossistema.

“É para preservar a biodiversidade. Na Canga se desenvolve um ecossistema do tipo savana, as plantas se estabelecem onde há rachaduras nas rochas e ficam ali com pouquíssimo solo. E há animais também, que poderão voltar”, disse ele.

Para recuperar algumas espécies, os pesquisadores têm a ajuda de outras vidas: as bactérias. O processo consiste em multiplicar, em biorreatores, os microrganismos para acelerar o processo, fornecendo a eles uma solução composta de água, açúcar, ferro e outros nutrientes. Depois de algum tempo, esses microrganismos se multiplicam e a solução com os microrganismos/bactérias é jogada na área que se quer reconstituir. Após a hidratação, a ideia é que os microrganismos, as bactérias, solubilizem o ferro, este é seu papel.

“As bactérias vão liberar o ferro de partículas do rejeito para produzir energia”, conta Jose Augusto, microbiologista e pesquisador do ITV DS.

Algumas horas depois, o solo irá secar e o ferro vai precipitar, conectando as partículas menores do solo, formando biofilmes. O ferro oxida novamente, o ciclo de hidratação e ressecamento se repete mais e mais vezes. Todo esse processo é chamado de biocimentação, e começou a ser pensado na década de 80 pelo cientista Paulo Vasconcelos, que atualmente é professor da Escola de Ciências da Terra e Ambientais da Universidade de Quensland, na Austrália. Em 2010, a proposta de recuperação da Canga dos Carajás foi oficializada pelo professor ao Instituto Tecnológico Vale Mineração.

“Eu achava uma coisa extremamente curiosa ter uma complexidade tão grande na Canga. Com a ajuda de um colega, entendi essa complexidade quando ele desenvolveu uma técnica de datar o cimento da Canga. A pesquisadora Hevelyn Monteiro se envolveu no trabalho e datamos as Cangas do Quadrilátero Ferrífero. Com isso descobrimos que o processo geológico é instantâneo. A Canga é uma proteção da formação ferrífera que é auto reconstituível, mas tem que ter um processo ativo para fazer esta reconstituição. O fator principal nessa reconstituição é o biológico. Foi então que eu propus ao ITV de conseguirmos reproduzir isto em laboratório. A lógica é esta: quanto mais se entende a natureza, mais se consegue copiar o que ela fez direito”, conta Paulo Vasconcelos.

Da experiência laboratorial para o campo foram muitos passos dados por estudiosos que buscaram, como salienta Paulo Vasconcelos, “entender o sistema para criar o produto que a natureza criou”. E, hoje, a equipe coordenada por Markus Gastauer está muito próximo de comemorar o resultado positivo do programa de reconstituição da Canga dos Carajás.

ENTREVISTA/ Paulo Vasconcelos

Quando e por que você começou a estudar Cangas?

Paulo Vasconcelos – Eu propus este projeto de recuperação da Canga ao Instituto Tecnológico Vale em 2010, mas comecei a fazer o trabalho na década de 1980, quando eu trabalhava em Carajás. Na verdade, acho que até bem antes disso, quando eu passava as minhas férias em Itabira, na casa da minha avó, e gostava de brincar com as pedras que meu tio trazia da mina onde trabalhava.  Mas foi em 2009 que, como diretor científico do ITV Mineração, comecei a pensar mais sobre o tema. Creio que é preciso entender o sistema da natureza para saber criar o que a natureza fez. Eu achava uma coisa extremamente curiosa ter uma complexidade tão grande na Canga, e só entendi essa complexidade quando comecei a trabalhar com um colega que desenvolveu uma técnica de datar o cimento da Canga. Esta técnica virou uma tese mestrado de uma aluna minha da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Hevelyn Monteiro. A semente do programa de restauração começou em 2010, mas os primeiros trabalhos começaram a sair em 2015, 2016. Em 2012 montamos um laboratório em Belém, e o pessoal agora está dando continuidade a isso. 

O que é datar o cimento da Canga e qual a importância disso?

Paulo Vasconcelos – A Canga tem um mineral chamado Goethita, que aparece sob a forma de um agregado cristalino fibroso. E é feita de fragmentos de rocha, fragmentos de hematita, fragmentos de formação ferrífera, todos cimentados por este mineral Goethita. Em 1999 eu me associe a um colega que trabalhava com urânio e fosfato, e disse a ele que tínhamos possibilidade de datar a Canga. Começamos a fazer isto, publicamos um paper. Mas o trabalho evoluiu quando a Hevelyn Monteiro se envolveu e começou a datar as Cangas do Quatrilátero Ferrífero. Com o trabalho dela, foi possível mostrar que as idades da Canga vinham desde o começo da formação da Canga até ontem. Ou seja, a Canga se autorregenera. Ela é muito antiga, mas é bem jovem.

O que isto quer dizer?

Paulo Vasconcelos – O processo geológico é instantâneo. O que vimos foi uma variedade na idade de precipitação do mesmo mineral goethita: uns se precipitaram há 70 milhões de anos, outros há 200 milhões de anos, outros agora.  É um processo, portanto, repetitivo ao longo do tempo. Mais ou menos como se você tivesse uma estrada de concreto onde passassem caminhões pesados que iam quebrando o concreto e ele se reconstituindo sempre. Teríamos uma estrada de concreto que duraria para sempre. Da mesma maneira, a Canga é uma proteção da formação ferrífera que é auto reconstituível. Mas o que vimos é que tem que ter um processo ativo para fazer esta reconstituição. Toda vez que tem uma fratura, ela recimenta. Fomos pesquisar o que está acontece neste sistema.

Este foi o coração da pesquisa?

Paulo Vasconcelos – Sim, e a Hevelyn publicou fotos no trabalho dela mostrando que o que parecia ser um fator principal nessa reconstituição é o fator biológico. Que é possível criar espaços em que raízes, formigas, cupins e bactérias conseguem recimentar tudo. Foi nesta época, em 2010, que eu fiz a proposta para o ITV, onde eu trabalhava, a fazer parceria com a Universidade de Queensland para montarmos um biorreator.

O que é um biorreator?

Paulo Vasconcelos – Exatamente isto: fragmentos de canga quebrada, um sistema de recirculação de água criando um sistema oxidante depois redutor e dando alimento para as bactérias que já existiam na Canga. Foi assim que conseguimos fazer um bloco de Canga no laboratório em um ano. A questão agora era fazer isso no campo para mostrar que é possível reproduzir essa Canga. Porque no momento em que se consegue reproduzi-la no campo, é possível criar a possibilidade de fazer uma recuperação ambiental apropriada para aquele tipo de rocha. É exatamente o que o pessoal do ITV Belém está fazendo neste momento, dando continuidade, em campo, ao que fizemos em laboratório.

ENTREVISTA/Markus Gastauer

O que é Canga?

Markus Gastauer – É o tipo de rocha que caracteriza os ecossistemas que revestem esses depósitos de ferro como em Carajás e no Quadrilátero Ferrífero. São rochas que resistem à erosão do tempo – vento, chuva, sol – e, por isto, se encontram em grandes porções na paisagem. A Canga é um ecossistema do tipo savana, as plantas se estabelecem onde tem rachaduras nas rochas e conseguem viver ali, mesmo com pouquíssimo solo. Para alcançar o minério que está abaixo da Canga, é preciso removê-la. Nosso interesse, no ITV DS é reconstruí-la para gerar o habitat para aquelas espécies de fauna e flora que existe ali.

O Programa Restauração de Cangas da Serra dos Carajás por Indução Bioquímica Microbiana que você coordena no ITV DS, então, tem esta função?

Markus Gastauer – Sim, nosso maior gol é conservar a biodiversidade existente ali.

E como isso vai ser feito?

Markus Gastauer – Até agora fizemos em laboratório, mas já estamos em campo. Criamos os biorreatores, onde multiplicamos os microrganismos associados ao sistema, fornecendo para eles um pouco de ferro, açúcar e outros nutrientes. Esperamos que eles se multipliquem dentro desses biorreatores e jogamos o produto na área que queremos reconstruir.  Com o solo encharcado, o ambiente fica sem oxigênio porque todos os poros estão preenchidos com água. Cria-se, então, condições aeróbicas para que as bactérias solubilizem o ferro. O segundo passo é o secamento do solo.

O que acontece então?

Markus Gastauer – Quando a água se evapora, o ferro oxida novamente, reage com o oxigênio, formando um pequeno filme, que chamamos de biofilme. Para ilustrar: imagine uma pequena camada de neve. É o que eu chamo de precipitação do ferro. Nossa ideia é repetir esse ciclo de hidratação e ressecamento tantas vezes forem necessárias para que esses filmes engrossem, se juntem às partículas do solo e virem algo parecido à Canga original.

Isto foi feito em laboratório, e agora vocês estão levando para o campo. Qual a escala?

Markus Gastauer – Por enquanto estamos trabalhando, em Carajás, num território com 600 metros quadrados. Ainda temos algumas perguntas em aberto e queremos otimizar o processo. O que estamos fazendo é uma escala piloto. Mas queremos muito colocar em larga escala.

Esta solução que foi criada no biorreator é a alma do processo todo?

Markus Gastauer – Sim e não. Por um lado, sabemos que as bactérias que estamos produzindo estão envolvidas no processo. Mas há indícios de que não se precise de todos os ingredientes para ter uma biocimentação. Ou seja, talvez o processo seja mais fácil, pode ser que a gente precise de menos esforço, e é isto que estamos comparando nesse primeiro experimento. Uma vez jogamos apenas água. Num outro terreno jogamos água com açúcar e num terceiro momento jogamos os ingredientes completos.

Já existe este experimento em outros países?

Markus Gastauer – Não, é inovação pura. Existe o grupo de pesquisadores que trabalhou isto no laboratório (com o professor Paulo Vasconcelos). Mas, no campo, é a primeira vez. E é muito bom ver a empolgação da equipe – somos dois pesquisadores e três bolsistas. A ideia é sairmos dos 600 metros quadrados para 60 hectares e mais.

ENTREVISTA/José Augusto Bitencourt

Como pesquisador da equipe do Programa Restauração de Cangas da Serra dos Carajás por Indução Bioquímica Microbiana, você vai a campo ou trabalha mais em laboratório?

José Augusto Bitencourt – O projeto foi dividido em várias etapas. Estamos há seis meses trabalhando em laboratório e há dois meses fomos para o campo. Eu já trabalhei em campo, e agora estou mais em laboratório.

Qual a sua participação?

José Augusto Bitencourt – Como microbiologista, pesquisador no campo da genômica ambiental, participo mais da parte de estruturação da rocha. Atuo mais na microbiota, seleciono, ajudo a compreender os fenômenos biogeoquímicos que estão acontecendo ali. Tem mais dois colegas: um que está na proteômica e o Markus Gastauer, que coordena e está mais na parte do reflorestamento. São vários projetos, é algo gigante e muito complexo tanto na parte de micro quanto na parte de macro.

Por conta da sua especialidade, você está atuando mais com a questão das bactérias. Pode contar como é este trabalho?

José Augusto Bitencourt – As bactérias têm de 0,2 a 2 micrometros, são unicelulares. Devido à evolução delas e à complexidade daquele ambiente, elas não vivem isoladas, tendem a se consorciar com outras bactérias e outros organismos, uma sociedade que vai ajudá-las a sobreviver ali. A tendência delas, como já estudamos, é trabalhar com o ferro para produzir energia. Elas vão dialogar quimicamente para poder trabalhar esse ferro, liberar partículas dele para conseguir produzir energia. Quando elas fazem a liberação do ferro, como ele está num ambiente com pH próximo ao básico, a tendência dele é precipitar. Isso ajuda a formar a estrutura da Canga. A biocimentação é isto, é o que vai ser reproduzido em laboratório.

Quando se fala em diálogo químico, é mesmo uma linguagem que é empregada?

José Augusto Bitencourt – Sim. A nossa linguagem é verbal, mas os microrganismos têm uma linguagem bioquímica e molecular. As outras bactérias vão entender, é uma conversa bioquímica. Este processo é como se fosse uma caixa preta: sabemos como funciona, temos ideia do que pode provocar, mas o que está lá dentro ainda é uma caixa preta. Estamos abrindo essa caixa preta. Já sabemos que a atividade bioquímica das bactérias vai transformar parte do material das rochas e produzir um cimento. Este cimento vai grudar em outras partículas e vai transformar o material em algo mais coeso. A parte interessante é que as bactérias conseguem aumentar o espaço neste material e ele fica diverso microbiologicamente. Nesse ponto, as plantas vão conseguir prosperar.

Esta é a meta?

José Augusto Bitencourt – Mais do que isto: é um gol olímpico. Vamos ter, com o tempo, muitas plantas endêmicas. A ideia é aumentar as atividades microbianas, o que vai permitir que as plantas se virem sozinhas, não vamos precisar estar presentes. É a nossa cereja do bolo.