17/05/2022

Biodiversidade: para proteger, é preciso conhecer

O cricrió, também conhecido como capitão do mato, cujo nome científico é Lipaugus vociferanus, é um pássaro que ocorre na Amazônia. Ele não mede mais do que 28 cm, não tem uma cor especial. Mas ele se diferencia por causa do seu canto. Um som metálico alto, muito alto, que pode ser ouvido à distância.

Ouça o canto do Cricrió

Já o urutau, também conhecido como mãe da Lua, cujo nome científico é Nyctibius griseus, tem o canto mais triste da floresta, quase um lamento, dizem os nativos. É um pássaro maior, chega a medir 40cm, e tem ainda outra peculiaridade: consegue ficar da mesma cor da árvore onde pousa.

Ouça o canto do Urutau

Para respeitar a importância dos animais na manutenção da floresta, é preciso conhecê-los. E saber definir os sons emitidos pelas espécies faz parte deste conhecimento. Mas o desafio de estudar a fauna dentro de florestas habitadas por diversas espécies, como a Amazônia, é um desafio complexo. Por isso o interesse do Instituto Tecnológico Vale de Desenvolvimento Sustentável (ITV DS) em automatizar coleta de dados e explorar novas tecnologias.

O projeto “Capital Natural da Floresta” do ITV DS é uma tentativa de se obter medidas de biodiversidade da flora e da fauna em áreas que estão sendo amostradas na Floresta Nacional de Carajás. E, para conhecer melhor a fauna, o projeto se dedica à pesquisa com sons da floresta, feita com a instalação de gravadores específicos para este fim fixados em árvores.

A pesquisadora Tereza Giannini, à frente do projeto, conta que o projeto começou em 2019 e já tem vinte mil minutos de sons gravados.

“Posicionamos o gravador a aproximadamente dois metros do solo, e ele grava um minuto a cada dez minutos ao longo de uma semana. Os sons são transformados em sonogramas e analisados em programas específicos de computador”, disse ela.

As aves, especialmente, trazem resultados muito interessantes para os estudos científicos. Apenas as aves estão sendo analisadas caso a caso no projeto do ITV DS, com ajuda de um especialista em cantos de aves da Amazônia.

Mas quando os cricriós se juntam em bando e cantam, fazendo o som que lhes dá a fama de ave mais barulhenta da Amazônia, o auxiliar técnico do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Ocirio de Souza Pereira, avisa aos alunos do doutorado que ele acompanha: “Se arruma porque a gente vai ter chuva”. Há quase quatro décadas Ocírio trabalha com pesquisa no Inpa, e a floresta é, praticamente, sua casa.

“Os bichos têm turno, não é todo mundo que canta o tempo todo. O turno mais barulhento é o da noite. Tem uns bichos que cantam dentro de um buraco e dá para se ouvir a até 500 metros de distância”, disse ele.

Ocírio é o exemplo vivo de que a parceria entre a Ciência e o saber tradicional funciona muito bem, sobretudo quando o objetivo é o mesmo: adquirir conhecimento. 

“Eu morava perto da floresta e não conhecia nada. Tinha muito entendimento sobre nome popular, mas não sabia quem é quem. Aprendi muito, com os cientistas, a vocalização dos bichos, os nomes científicos que eles têm, tanto de aves como dos sapos. Eu digo que na floresta eu não preciso presenciar o bicho, basta ter a vocalização e eu já sei que bicho é. Isso ajuda muito quando estamos fazendo levantamento no campo” disse ele.

Entrevista/Tereza Giannini

Interesse em explorar novas tecnologias

Quando começou o projeto Capital da Natural da Floresta?

Tereza Giannini – O projeto Capital Natural, que inclui a pesquisa sobre os sons, foi elaborado e submetido em 2018, e iniciou em março de 2019, propondo medidas de biodiversidade da flora e fauna em áreas na Floresta Nacional de Carajás. Estamos usando gravadores de sons que capturam a vocalização dos diferentes animais que estão presentes na floresta, e depois, programas específicos de computador calculam a variabilidade desses sons, para indicar a biodiversidade de animais. Trabalhamos em uma equipe que envolve biólogos, especialmente taxonomistas e ecólogos, entre outros especialistas.

Qual a importância dos animais para a floresta em pé?

Tereza Giannini – O objetivo do projeto consiste em entender os benefícios que a floresta apresenta para o bem-estar humano, como a proteção dos recursos hídricos, a regulação do clima local, e o armazenamento de carbono, que é um dos principais gases de efeito estufa. Mas, a floresta depende dos animais que nela habitam. Eles participam da reprodução das plantas através, por exemplo, da polinização, dispersão de sementes, além do controle de pragas pelos animais que se alimentam de insetos. Porém, o desafio de estudar a flora e a fauna dentro de florestas megadiversas como a Amazônica é muito grande. Por isso, tenho tido muito interesse em automatizar coleta de dados e explorar novas tecnologias.

Qual tecnologia é usada para captar os sons?

Tereza Giannini – Usamos um gravador específico, fixado em árvores, que grava os sons ao longo do dia todo. Posicionamos o gravador a aproximadamente dois metros do solo, e ele grava um minuto a cada dez minutos, ao longo de uma semana. Os sons são analisados em programas específicos de computador. Já temos aproximadamente vinte mil minutos gravados. São capturados vários tipos de sons diferentes. Vários insetos produzem sons através de atrito entre diferentes partes do corpo, como por exemplo, as cigarras. As aves, anuros e mamíferos, como por exemplo, os macacos, também produzem sons característicos de cada espécie. Porém, o que os gravadores mostram é a variabilidade, ou seja, eles indicam qual área tem mais sons diferentes, sem necessariamente, indicar quais espécies estão vocalizando.

Quais sons você acha mais curiosos?

Tereza Giannini – Especialmente as aves trazem resultados muito interessantes. Algumas delas não esperávamos ouvir porque são espécies mais raras nas áreas que estamos amostrando. Outras, ao contrário, são muito características: quando a ouvimos logo pensamos “ah estou em Carajás!” E é interessante encontrá-las nos gravadores em praticamente todas as áreas amostradas. A mais chamativa é uma ave denominada cricrió (Lipaugus vociferans), que tem um canto muito característico – ela canta muito alto, então se destaca muito no ambiente.

Qual a contribuição deste estudo para a sociedade?

Tereza Giannini – Conhecer a biodiversidade é fundamental para protegê-la, e proteger a biodiversidade significa proteger os benefícios que os ecossistemas oferecem para o ser humano. O projeto Capital Natural visa a compreender o valor da floresta em pé, no que diz respeito à proteção aos recursos hídricos, sequestro de carbono e regulação de clima local. Tudo isso tem a ver com a floresta, e a floresta depende das interações entre as plantas e os animais. Queremos analisar as relações entre flora e fauna, para entender as características marcantes da biodiversidade na floresta.

Entrevista/Ocírio de Souza Pereira

O diálogo entre Ciência e saber tradicional

Há quantos anos o senhor trabalha na floresta?

Ocírio de Souza Pereira – Eu sempre morei perto de floresta, só saí quando precisei ir para a cidade estudar. Comecei em 1981, com topografia. Uns três anos depois eu conheci a equipe do Projeto Dinâmico Biológico de Fragmentos Florestais (PDBFF), quando eles ainda nem pertenciam ao Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Comecei a trabalhar com pesquisa e foi aí que aprendi tudo o que não sabia sobre o nome das plantas, dos bichos. Depois comecei a trabalhar no Inpa, onde estou até hoje, e aprendi que é possível ter emprego e gostar do que se faz. Hoje eu trabalho com alunos do mestrado, do doutorado, vou a campo com eles orientando e ensinando o que eu aprendi.

O que você aprendeu?

Ocírio de Souza Pereira – Aprendi muito, por exemplo, a vocalização dos bichos, tanto de aves como dos sapos. Eu digo que na floresta eu não preciso presenciar o bicho, basta ter a vocalização e eu já sei que bicho é. Isso ajuda muito quando estamos fazendo levantamento no campo.

O senhor está falando de ouvir a floresta, né?

Ocírio de Souza Pereira – Sim. Quando comecei a trabalhar com anfíbios, fazíamos a gravação no campo e eu levava as gravações para a cidade, no escritório (do Inpa) ouvindo o canto e escrevendo o nome científico de cada um dos bichos. Dos mamíferos também.  Tem os bichos diurnos, os bichos noturnos. O horário de pico dos diurnos é de 5h30m até 7h30m. Já o turno dos noturnos começa no finalzinho da tarde e vai até as 19h. E ainda tem outro grupo noturno que vai até tarde. Mas é importante ficar em silêncio, a floresta exige que a pessoa preste atenção o tempo todo.

Qual o turno mais barulhento da floresta?

Ocirio de Souza Pereira – O turno da noite. Tem uns bichos que cantam e a gente ouve à distância, até 500 metros. Alguns têm o hábito de se meter num buraco e cantar de lá de dentro, mas dá um som muito alto. Mas se o pesquisador vai para a floresta observar sapos ou pássaros, tem que ir bem devagar, parar, tem que ter paciência. Porque se andar rápido não vai ouvir nada e os bichos vão vê-lo de longe. Às vezes o pesquisador para ao ver um bicho e, se tiver paciência, ganha outro de brinde. E pode ouvir várias coisas que nem estava querendo ouvir.

Por que os bichos cantam?

Ocírio de Souza Pereira – Normalmente os machos cantam para chamar as fêmeas. Cada macaco emite um som diferente, e eu hoje já sou capaz de identificar cada um deles. O Bugio é o que mais assusta, o macho canta muito alto, a fêmea emite um som mais fino. O macaco aranha tem um grito muito alto também, parece uma pessoa. Já o macaco prego assobia. Mas tem aqueles que cantam para avisar que vai chover. O tucano, por exemplo: se ele canta muito alto é chuva na certa. Tem um sapo também, chamado Synapturanus danta,que tem uma carinha de anta, o focinho fininho e os músculos das coxas bem grossinhos. Ele fica enterrado no chão, deve medir 4,5 cm, e escuta o som da chuva muito longe. Pode estar fazendo sol: quando ele apita, meia hora depois começa a chover. O pessoal estranha quando eu aviso, e pergunta como eu sei essas coisas. Eu digo que não sou eu, são os bichos. Eles é que escutam o som da chuva. Quando eles estão perto do aeroporto e ouvem o ronco do motor, eles cantam porque pensam que o motor é trovão.

Qual o maior risco da floresta?

Ocírio de Souza Pereira – Para mim, o maior risco é a cobra, e ainda bem que temos poucas cobras venenosas aqui na Amazônia. As mais perigosas mesmo são a bico de jaca (surucucu) e a jararaca.

As cobras são silenciosas, daí o maior perigo?

Ocírio de Souza Pereira – Sim. O maior medo é que não se consegue ver esses bichos, e eles nos veem. Ela emite um som com o rabo, mesmo as que não são venenosas. Tenho mais medo de cobra do que de onça. A onça emite um som bem alto e tem um cheiro muito forte, característico. É muito fácil reconhecer o caminho que ela faz porque ela come capim para ajudar na digestão e regurgita pelo caminho.

O senhor juntou a percepção, o conhecimento de uma pessoa que nasceu e vive na floresta, com o conhecimento científico. Fale um pouco sobre essa experiência, por favor.

Ocírio de Souza Pereira – Isso é muito rico. Quando eu estou trabalhando eu presto muita atenção ao que os alunos dizem. E vou aprendendo, escrevendo os nomes, e isso vai multiplicando a aprendizagem. Hoje em dia, quando outros colegas trabalham comigo na floresta, eles ficam me perguntando as coisas e eu digo: pode perguntar. Tudo o que a gente aprende com os alunos é preciso. Quando a gente vê um fungo, eu procuro perguntar o nome, para que serve, se é para tocar ou não. Na floresta, tudo tem seu valor e precisa saber lidar. A Ciência ensina muitas outras coisas, tem que investir neste conhecimento.