Projeto GBB utiliza DNA ambiental (eDNA) metabarcoding para monitoramento da biodiversidade em áreas protegidas do país
O mais recente Relatório Planeta Vivo, produzido pela rede WWF, apontou que, entre 1970 e 2018, houve um declínio de 94% das espécies de vertebrados monitoradas na América Latina. Isso representa uma grave ameaça à biodiversidade do planeta, sobretudo no Brasil, país megadiverso que abriga espécies importantes para a biodiversidade global. A conservação das espécies é urgente e, para que ocorra de forma efetiva, é preciso entender sua distribuição a partir do monitoramento ambiental contínuo, utilizando diferentes metodologias.
Esse monitoramento é um dos objetivos do projeto “Pesquisas moleculares como ferramenta para a conservação da biodiversidade”, ou Genômica da Biodiversidade Brasileira (GBB), realizado pelo Instituto Tecnológico Vale – Desenvolvimento Sustentável (ITV-DS) em parceria com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

“É importante monitorarmos essas espécies para conseguirmos fazer esse levantamento e entender a distribuição delas nos biomas e observar se houve aumento ou declínio dessas populações”, informa Izabela Santos Mendes, bolsista de pós-doutorado pelo ITV e pesquisadora do GBB.
Em linhas gerais, o GBB prevê o sequenciamento genômico de espécies da fauna e flora brasileiras, incluindo aquelas ameaçadas de extinção, exóticas invasoras ou que tenham potencial bioeconômico.
Metodologias tradicionais x DNA ambiental (eDNA) metabarcoding
Existem diversas ferramentas para identificação de espécies em um determinado ecossistema, e uma delas é o DNA barcoding (ou DNA código de barras), que permite a identificação de uma determinada espécie com precisão a partir do sequenciamento de uma parte do seu DNA extraído, seja de um pedaço de tecido ou do sangue. Nesse caso, é preciso que os pesquisadores tenham pelo menos um indivíduo daquela espécie em mãos para que seja feita a coleta do material genético.
Já a ferramenta chamada DNA metabarcoding utiliza um sequenciamento de alto rendimento (sequenciamento de nova geração) do DNA naturalmente presente no ambiente (na água, ar, solo, etc.), o que permite a identificação de múltiplas espécies, simultaneamente, que habitam aquele ambiente. Essa última ferramenta é associada ao DNA ambiental, do inglês environmental DNA ou apenas eDNA. A grande vantagem desta ferramenta é que ela não depende do registro visual ou acústico da espécie no local para que seja comprovada a sua existência naquele habitat. O eDNA metabarcoding surge, portanto, como uma alternativa promissora e inovadora para o monitoramento ambiental, pois não é invasiva.

Segundo Luanne Lima, pesquisadora do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (CENAP), do ICMBio, essa metodologia é importante para o monitoramento da biodiversidade, uma vez que funciona como um “termômetro” para entender a saúde do planeta. “Com o monitoramento, você consegue acompanhar a dinâmica das espécies e avaliar impactos externos, ações de conservação ou até mudanças climáticas. Nesses casos, fazemos um monitoramento a longo prazo e podemos identificar quais espécies estavam presentes no local em um determinado período”, explica Luanne.
Programa MONITORA
O uso do eDNA metabarcoding foi definido como um dos pilares de desenvolvimento do GBB, em um workshop com os pesquisadores do ITV, ICMBio e especialistas no tema, em 2023. Durante o evento, foram traçadas as diretrizes do projeto, as quais definiram a utilização da metodologia para o monitoramento cujos dados serão comparados com os do Programa MONITORA, do ICMBio.
“Nós tivemos uma demanda muito grande em relação à utilização do eDNA metabarcoding, e o que foi definido em plenária, em relação ao eixo do Metabarcoding, é que os projetos iriam agregar mais de um Centro de Pesquisa do ICMBio, e não só um único centro ou outro. Então, definimos que os projetos desenvolvidos com o uso dessa metodologia seriam projetos de comparação entre ferramentas de monitoramento para elaboração de um protocolo padronizado que poderá ser inserido no programa de monitoramento do ICMBio: o MONITORA”, comenta Izabela.
O MONITORA foi instituído em 2017 e envolve muitas unidades de conservação no território Brasileiro. Desde sua implementação, o programa tem o objetivo de estabelecer protocolos de monitoramento factíveis e de fácil reprodução em diferentes unidades de conservação. Por meio de parcerias, o programa utiliza dois protocolos de monitoramento: o de transecção linear, em que são estabelecidas linhas contínuas para observação de espécies; e o armadilhamento fotográfico, que conta com a instalação de dispositivos fotográficos para obtenção de imagens das espécies. O pilar de orientação do GBB é então comparar os resultados da utilização do DNA ambiental metabarcoding com os resultados já obtidos pelo MONITORA.
Coleta na Flona do Tapajós
O primeiro passo para o desenvolvimento desse estudo já foi dado. Em Junho de 2024, pesquisadores do ICMBio, ITV e Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) realizaram uma expedição na Floresta Nacional (Flona) do Tapajós para a coleta de material. Foram 10 dias de trabalhos que resultaram na coleta de mais de 200 amostras que ainda serão analisadas.
A realização de um trabalho de campo inicia-se muito antes da viagem ao local. José Augusto Bitencourt, pesquisador do Comitê Gestor do ITV no projeto GBB, explica que existe toda uma etapa burocrática e de gestão de projeto que facilita o trabalho dos pesquisadores. “Eu não estive no campo em si, mas há outros desafios antes do campo propriamente dito. E é nessa parte que eu atuo. Precisamos ter a metodologia testada na bancada para que ela funcione em campo. Então, junto com os bolsistas do ITV/ICMBio e outros colegas do grupo, montamos um protocolo. Também atuei na parte logística do campo, tanto das viagens quanto da retirada do material. Foi uma coleta muito bem-sucedida e tivemos que viabilizar o transporte das amostras em cadeia fria, do início ao fim”, explica José.

Após a etapa de preparação e organização da logística, os pesquisadores partiram, no dia 03 de Junho de 2024, para a Flona do Tapajós. Nos dias de campo, foram coletadas amostras de solo, serrapilheira, moscas e outros invertebrados. O campo foi coordenado por Luanne Lima, e ela explica que, por meio das amostras de solo e serrapilheira, é possível identificar as espécies que estão presentes no local e que deixaram algum vestígio ali, como suor, urina, pêlos, entre outros. Com a metodologia de DNA metabarcoding, não é preciso ter uma imagem da espécie nem mesmo capturar o indivíduo para o sequenciamento do DNA.
No caso das moscas, a pesquisadora Izabela Mendes explica que a captura, monitoramento e análise permite identificar o que as moscas estão ingerindo. “Ou seja, é possível monitorar, também, os mamíferos que estão ali presentes e que servem de “alimento” para as moscas. Já a coleta de amostras de invertebrados foi feita a partir de uma armadilha chamada ‘Malaise’. Ela intercepta o voo do inseto, que cai em um recipiente com etanol”, explica Izabela.
Luanne complementa: “Depois realizamos a etapa de bioinformática, que é tratar os dados gerados pelo sequenciamento até que se tenha todas as sequências definidas. Em seguida, as sequências são confrontadas com o banco de dados e assim conseguimos ter o resultado e concluir que determinada sequência pode ser, por exemplo, de um macaco-prego ou de uma anta”.

As pesquisadoras afirmam que o trabalho de coleta é muito sensível e, por isso, requer uma preparação das equipes que estão trabalhando naquele processo. Luanne explica que, nos dias de campo, foi realizada a capacitação de servidores do ICMBio, que aprenderam a realizar a amostragem sem contaminar o local de coleta. Isso porque, uma das dificuldades desse tipo de pesquisa é que o DNA humano se misture com o DNA das espécies estudadas. Então é preciso muito cuidado e atenção na realização das coletas.
“Além da coleta de amostras, que era o nosso objetivo principal, nós também realizamos uma capacitação para mostrar aos outros servidores como a coleta é feita e quais são os cuidados que devem ser tomados, pois a maior contaminação do DNA ambiental é, justamente, com o DNA humano. Então, é preciso de cuidados como: usar máscara, calçar luvas, prender os cabelos, limpar as botas com água sanitária, entre outros procedimentos. Também é preciso entender o desenho amostral. Por que a gente está coletando aqui? Por que esse número de pontos?”, comenta Luanne.
Essa capacitação dos servidores é também um dos pilares do GBB, tanto para atuação em campo quanto para as análises em bancada. O projeto tem como objetivo replicar e compartilhar os conhecimentos obtidos. José Augusto reforça que todos os resultados serão catalogados e disponibilizados em uma biblioteca online de acesso gratuito para a população geral e outras instituições de pesquisa que queiram utilizar os dados do GBB.
Próximas etapas
Para Setembro de 2024, já está programada uma nova etapa do estudo com a coleta de amostras na Reserva Extrativista (Resex) do Rio Cajari, no Amapá. Nesta nova expedição de campo, os pesquisadores realizarão coletas em ambientes aquáticos continentais, como igarapés e áreas alagadas.
“A primeira foi uma Floresta Nacional, onde já é realizado manejo florestal por uma cooperativa, mas nós focamos em áreas onde não aconteceu ainda o manejo, porque nosso objetivo é levantar toda a biodiversidade sem interferência do manejo que extrai espécies de árvores para exploração comercial. Por isso, a segunda coleta será na Resex do Cajari. Lá, esperamos ter informações sobre peixes, invertebrados, anfíbios e macrófitas aquáticas da região”, explica Luanne.
Para José Augusto, a nova coleta é um novo desafio. “Trata-se de uma área bem remota. Mas é um desafio bem interessante. A área é basicamente composta de lagos e rios. É uma parte da floresta amazônica que as pessoas não costumam ver, pois acham que a floresta amazônica é só um ambiente de mata fechada. Mas essa vai ser uma área que é dominada por campos. E o grande desafio é que, em ambientes aquáticos, a capacidade de espalhar o nosso próprio material genético no local é maior. Então, os cuidados têm que ser redobrados”, reforça José.
Tanto a Flona do Tapajós quanto a Resex do Rio Cajari são regiões onde já existem pesquisas feitas no escopo do MONITORA. Para o próximo ano, ainda estão previstas coletas em áreas savânicas, como o Cerrado e a Caatinga, e em ambientes marinhos, como mangues, também já estudados pelo MONITORA.
“No final das contas, nós queremos saber quanto que custou o levantamento por DNA ambiental metabarcoding, não só em termos de recursos financeiros, mas também pensando em equipe, logística, infraestrutura, e comparar com o método tradicional do MONITORA. Mas só pelos resultados que já temos até agora, dá para ver que a metodologia é uma grande vantagem”, comenta Luanne.
José Augusto reforça que a utilização da metodologia de eDNA metabarcoding nessa magnitude proposta pelo GBB é algo inédito na América do Sul. Embora muitos países já utilizem a ferramenta, ela ainda não foi testada em larga escala em regiões equatoriais e tropicais. Então, esse é um passo importante para a compreensão da biodiversidade no sul global.